sábado, 3 de junho de 2017

A reflexibilidade no mercado financeiro (Parte 1): O princípio da falibilidade

Olá a todos,

Como texto de “estréia”, irei tratar da noção de reflexibilidade aplicada aos investimentos. O tema já foi trabalhado por George Soros  num artigo escrito no FinancialTimes há quase uma década, mas não me fiarei exclusivamente a ele.

Primeiramente, antes de discutir a questão financeira propriamente dita, devo ressaltar que a noção de reflexibilidade foi tomada por Soros do pensamento de seu orientador de doutorado, Karl Popper. Creio que Popper mereça um (ou melhor, vários) textos focados em seu pensamento e, evitando ser pernóstico, indico os interessados assistirem os 6 blocos de entrevista daquele pensador no programa Uncertain Truth, no fim dos anos 80 (nos quais dois tiveram como entrevistador John Eccles, prêmio Nobel de Medicina em 1963) .

Popper teve uma  formação e carreira multidisciplinar – abandonou os estudos no final do ensino médio, ingressou na faculdade após fazer a “Matura” já na casa dos vinte anos (algo como fazer uma prova  do supletivo), doutorou-se num programa de pesquisa em Psicologia, escreveu uma obra prima na área  da Filosofia da Ciência para conseguir fugir da Austria no período nazista, conseguindo uma vaga de professor numa faculdade no interior da Nova Zelândia, onde escreveu  a obra de Filosofia Política que o tornou famoso – os dois volumes de The Open Society and its Enemies. Após a guerra, se tornou professor na London School of Economics (a qual teve Soros como aluno). A autobiografia intelectual dele, Unended Quest, é um livro que vale a pena ler.

Fonte:http://funkman.org/animal/bird/blackswan.html
Qualquer análise, feita por quem quer  que seja, é parcial – quer por não abarcar a infinitude de inputs possíveis, incluidas externalidades, quer por sofrer influencia  das concepções prévias do  intérprete. Assim, como um critério de delimitação do caráter científico de uma dada teoria, a verificação destas em todos os testes e experimentos não é um critério adequado, mas sim a sua abertura para o falseamento – assim, a afirmação “todos os cisnes são brancos” cai por terra com a observação de um único cisne negro (Taleb tomou emprestado a metáfora do cisne negro de Popper (nunca li o livro do financista, mas conheço bem o pensamento do filósofo austríaco).

Contudo, não quero tratar do espinhoso tema  da delimitação da ciência. Na verdade, preciso ressaltar que, sobre tudo, o verificacionismo lugar-comum induz facilmente o analista ao “efeito édipo” (como demonstrarei adiante) com a criação de profecias autorealizadas. Num ponto de vista mais amplo, tal efeito também influencia o comportamento da bolsa, uma vez que há uma assimetria no conhecimento dos players do mercado, o que reflete no comportamento deste no próprio mercado, influenciando o comportamento do próprio mercado– tema que, embora interessante, não será tratado neste texto, mas no próximo (acerca da noção de reflexibilidade propriamente dita). Por ora, procuro  aqui tratar dos efeitos do ponto de vista parcial de um dado agente nas escolhas feitas por ele na alocação de seu capital.

Para tanto, já sintetizo meuraciocínio num axioma:

Nenhuma forma de valuation vai assegurar um dado resultado futuro, muito menos determinar o preço justo exato de uma ação.

Com efeito,  possível dizer que a “observação dos fatos” feita por um investidor não é apenas uma mera recepção de dados, mas uma interpretação de uma parcela dos fatos à luz de concepções prévias, da mesma maneira que Popper equiparava “observações clínicas” à “interpretações” feitas com base na teoria do pesquisador – em suma, aquilo que Popper chamava de “efeito Édipo”.

Neste contexto, tratar de “valor intrínseco” de uma dada ação torna-se não apenas um juízo de certeza, com base nos seus dados, mas um ato de fé – fé que os fatores intangíveis empregados numa dada análise se concretizem no futuro, bem como não apareça um cisne negro pela frente.

Fonte:http://sorisomail.com/nadata,4,2,2012,julias,1,1/1-id-desc.html
Em outras palavras, não há uma dualidade entre Sr. Mercado razoavelmente  irracional oferecendo cifras diversas por uma determinada ação versus um investidor prudente que sabe o “valor intrínseco” dela. Pelo contrário, há um resultado de um agregado de pontos de vistas parciais sobre o valor de uma determinada ação que pode se contrastar ou não com o ponto de vista (igualmente parcial) do investidor – a interação entre estes pontos de vista parciais será tratada por outro texto, focado no “princípio da reflexibilidade”.
Dito isso, não é por outro motivo que Damodaran adverte que há uma “margem de erro” em qualquer  tipo  de valuation (não vou citar aqui por estar falando de cabeça, mas quem conhece sabe). Por certo, empresas sólidas e saudáveis tendem a (mas não necessariamente vão) continuar existindo e gerando valor aos acionistas, independentemente de distorções nos preços de suas cotas no curto prazo – uma vez que a solidez passada não necessariamente implica numa solidez futura.

Afinal, nem os ditos retornos esperados (expected returns), tampouco os riscos futuros são diretamente aferíveis – tal aferição é possível tão somente com os retornos e riscos já realizados. Neste contexto, fazer uma avaliação de um investimento se assemelha com dirigir um carro estrada a frente se guiando tão somente pelo retrovisor – ou seja, a análise dos retornos esperados se pauta preemptoriamente pela interpretação de uma restrita base de dados passados extrapolados (de diversas formas) pelo investidor para  o futuro.


Fonte:http://steeritedrivingschool.com/importance-of-the-side-mirror/

Aos colegas da blogosfera, trarei um exemplo conhecido: o all-in do Pobretão numa empresa do ramo elétrico.

Àqueles que não tiveram a oportunidade de conhecer seu  finado (e polêmico) blog, o Pobreta, em algum ponto de 2011-2012 (não me lembro ao certo), optou por investir praticamente todo seu patrimônio na referida empresa, com base nas vultosas distribuições de dividendos então existentes, bem como na possibilidade de um reajuste benéfico das tarifas desta nos anos seguintes.

Em suma, o célebre blogueiro, após olhar no seu retrovisor uma série de dados benéficos, seguiu  em frente na estrada dos investimentos. Contudo, apesar de ter traçado um retorno esperado com base em dados concretos,a sua frente apareceram alguns cisnes negros (e outros bem branquinhos e comuns, para ser sincero), sendo os principais: a política econômica dos anos seguintes, que desfavoreceu o setor elétrico; algumas questões  de gestão da própria empresa; a crise economica iniciada em 2014.

Por fim, após alguns anos, o Pobreta liquidou os investimentos naquela empresa e aportou em outras opções mais conservadoras.

Antes de mais nada, devo frisar sobretudo que não quero de maneira alguma denegrir a imagem deste blogueiro (se o mesmo se sentir assim, por favor comente com seu perfil neste post que retirarei as menções feitas), mas, pelo contrário, utilizar a experiência que ele mesmo compartilhou para evidenciar a ideia de falibilidade.

Em que pese as críticas, o referido investidor teve base em uma série de dados relativamente sólidos. Inclusive, na época, vários outros blogueiros tinham o tido ganso dos ovos de ouro em suas carteiras, analistas comentavam sobre ela internet afora (e até mesmo no You Tube). Ela não era exatamente um mico. Contudo, como apregoa a ideia  de falibilidade,o ponto de vista dele era fragmentado, ignorando fatores que já existiam a época (riscos do setor e do cenário econômico) e a possibilidade de uma ave com lustrosa penagem negra aparecer no seu caminho.

Fonte: http://autos.culturamix.com/marcas/chevrolet/camaro-amarelo-historia-informacoes-e-qualidade
O tempo passou,e os aportes na empresa aumentaram, numa suposta concretização da profecia autorealizada (a cotação vai cair para depois subir com o aumento da receita e recuperação da empresa). Hoje, o resultado é conhecido.

Novamente preciso frisar que não quero de maneira alguma denegrir o autor do blog - que sem sombra de dúvidas ajudou a unir a blogosfera financeira há alguns anos – mas sim mostrar que a sua jornada pode servir como uma cautionary tale.

Contudo, em que pese o exemplo ser conhecido, ainda vejo profecias autorealizadas blogosfera afora, em casos como: “A ação caiu, vou baixar o preço médio”... “A ação subiu, o mercado já está fazendo a correção para o preço justo”... “A FII está sendo negociada abaixo do valor patrimonial”.... “Vou comprar vacância”..... enfim, frases comuns na blogosfera financeira que por si só, não significam nada senão  um efeito édipo operando (e não, o sucesso eventual destas práticas não prova nada).

Eu adoraria dar exemplos aqui  de profecias passadas e presentes que existem ou já  existiram no mercado financeiro, mas infelizmente não tenho certificação para tanto. De qualquer forma, no próximo texto tratarei do ponto realmente interessante para os investidores: o efeito Édipo nos mercados financeiros, ou, como Soros denominou, o princípio da reflexibilidade.

Muito obrigado.



10 comentários:

  1. Olá Kundera,
    Excelente post.
    Bem-vindo a blogosfera.

    Abraços.

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    1. Muito obrigado Cowboy, vou tentar manter o blog com um ritmo regular de posts

      Abs!!!

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  2. Tenho conhecimento da teoria do soros já faz alguns anos, inclusive usei boa parte dos ensinamentos de diversos autores para montar minha estratégia atual.

    Aconteceu um porém na história do pobretão:

    - Alguns fatores que levaram boa parte da blogosfera amadora na época a cometer erros crassos de analise.

    - Analisar puramente por múltiplos.
    - Ignorar cenário futuro da macroeconomia.
    - Operar sem margem de segurança.
    - Aportar grande quantidade de dinheiro em mercado eufóricos.
    - Acreditar que Valuation é ciência

    Não custa lembrar que valuation não é ciência! Se trata unicamente de jogar probabilidades matemáticas a nosso favor.

    Muita gente ainda tem ideia fixa que valuation é uma formula fixa e metódica que alguns mestres iluminados vem aplicando há séculos.

    Se trata de algo Totalmente diferente: Para cada empresa em particular existe um Valuation diferente com indicadores distintos para cada caso, até por isso valuation é uma arte que poucos dominam e que demanda tempo de estudo aliada a praticada constante.

    Não há garantia de ganho fácil!

    EX: Supondo que um investidor compre uma ação por um valuation atrativo, dispondo de boa margem de segurança.

    Supondo que este investidor compre 1000 ações por 10 reais cada = 10 mil reais. Adiante estas ações são lançadas no imaginário do mercado. Supondo que neste cenário a maior parte casas de analises recomende compra com preço alvo em 20 reais.
    A ação dobra de valor: A reflexividade aplicada unicamente para massa de investidores, supondo que tal ação dobre de valor, agora você tem dispõem de 20 mil reais em valores de mercado, porém absolutamente nada se alterou nos fundamentos da ação.

    Apenas existe uma vaga expectativa que tal ação ira se valorizar futuramente devido aos lucros futuros projetados em planilhas de investimento, além de uma possível recuperação da economia.


    Vamos supor que depois de alguns anos a empresa quebre:
    Você Perdeu 5 mil já descontados dividendos e custo oportunidade do dinheiro.


    Quem comprou ação por 30 , perdeu 28 mil reais já descontados dividendos e custo oportunidade.

    - Nosso mercado opera baseado expectativa futura
    - Na maior parte das vezes o mercado não é eficiente.
    - Existe diferentes agentes operando no mercado, alguns não tem objetivos de longo prazo.
    - Alguns agentes podem vender por necessidade, medo , ganancia etc.
    - Existe um grande fator emocional por trás de cada ticker da bolsa.
    - Existe assimetria de informações dos grandes gestores em relação aos pequenos investidores.

















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    1. Cara seu comentário merecia um post próprio, é bem isso, infelizmente o value investing tem alguns mitos perniciosos que são perpetuados sem muita crítica.
      Inclusive essa questão da valuation variar de setor para setor (e até mesmo de empresa para empresa) merece uma reflexão própria, vou tomar esse gancho e escrever sobre isso no futuro.
      No mais não tenho nem o que adicionar ao seu comentário!
      Abs!!!

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  3. Kundera,

    Concordo inteiramente com o que escreveu ai ... muito bom o conteúdo ... tem uma frase famosa no mercado que diz "até relógio quebrado acerta .. e 2 vezes por dia!!!" hehe

    Abs,

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    1. é, e infelizmente profetas do passado abundam por aí afora rsrsrs

      Abs!!

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  4. Post de qualidade e embasado. Parabéns. Muito raro esse nível na blogosfera. Seja bem vindo, aguardamos mais posts.

    Te adicionei no meu blogroll.

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    1. Muito obrigado Japa, vou tentar manter um ritmo constante de postagens aqui no blogroll.
      Abs!!

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  5. Oi, Kundera! Obrigado por me indicar aquele PDF, foi-me muito útil! No momento, eu estou estudando pra o TRE-RJ. Não gostaria de morar nem no NE, nem no norte e nem no centro-oeste. Prefiro Sudeste e Sul. Já pago o qconcursos há muito tempo.

    Te add ao meu blogroll.

    Abraço!

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    1. Cara, me desculpe se fui muito direto no meu comentário no seu blog, reli ele agora e percebi que ele pode ter soado pouco polido.

      Se eu fosse você eu colocaria outro objetivo secundário, o TSE editou uma resolução esse ano aplicando uma resolução de 2014 (que tratava da criação de novas zonas eleitorais) para as zonas existentes.

      Resumo da história: extinguiram 48 zonas eleitorais (basicamente metade das zonas) na capital, e ainda vai ter um rezoneamento no interior.

      Os servidores das zonas extintas vão ser lotados provisoriamente nas zonas que abarcaram suas antigas zonas. Os que exercem função de assistente (FC-1) podem continuar lotados nas antigas zonas, convertidas em postos de atendimento - sendo que a maioria destes postos será extinta depois da eleição de 2018.

      Desta forma, o TRE-RJ estará em breve cheio de cargos excedentes, o que não é um bom prognóstico para nomeações futuras.

      O TRF1 abarca MG - que não chama tanto igual PA, mas é do lado do RJ - e o MPU tem vagas em todo territorio nacional, inclusive RJ.

      Forte abraço e bons estudos.

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